Povo e fronteira
Relatos dum escrivão na contagem de moradores e delimitação do território português, ano 1531.
“Ruivães é aldeia mistiga de Galiza e Portugal, que vivem misturados Galegos e Portugueses, us mitidos por outros e nam há certa divisão entre us nem outros.
E quando estes fazem casa nova pergunta é se a fazem por de Portugal se por de Galiza; e se dizem que por de Portugal são-no, e se de Galiza também; E hoje são todos galegos e amanha portugueses.”
“E os portugueses estão mitidos por Galiza nos ditos lugares, e os galegos em Portugal, e uas casas são de Galegos e outras de Portugueses, e não tem certa divisão entre us e outros. E já a estas duas aldeas místicas, por mandado dos Reis de Portugal e Galiza, foram corregedores e justiças para as repartirem, e estiveram sobre isso muitos dias e tempos, e não as puderam divisar, e passaram sentenças que estivessem assim como sempre estiveram”
Em Ruivães, Santiago e Meãos ainda em 1518 os conflitos institucionais continuavam muito vivos. Os licenciados Antoneo Correa (portugues) e Escalante (castelhano) confrontaram-se com as dificuldades das jurisdições senhoriais do Duque de Bragança (que eram quem mandava realmente em grande parte do Norte de Portugal, poder esse que era temido pelo rei) e do galego conde D. Fernando de Andrade. Os magistrados, incapazes de julgar, procuraram disfarçar uma retirada, deixando a decisão para as autoridades locais.
Estas gentes, viviam (e ainda vivem) em fortes comunidades, longe da construção da ficção jurídica do estado.
Não podendo marcar uma fronteira, os magistrados confirmaram o costume antigo
“Que pacem e cortem e bebam uns com os outros juntamente como sempre usaram”
Os magistrados régios tiveram de arranjar maneira de decidir, não decidindo.
Claro que tão simpáticas decisões devem-se ao isolamento das populações do Norte de Portugal e da Galiza, longe dos circuitos comerciais, e com uma agreste disposição do relevo que não permitia fluxos regulares e volumosos de mercadorias. Daí a marginalidade consentida a estas populações para que continuassem mantendo antigas praticas e velhos costumes.
A fronteira entre o Norte de Portugal e a Galiza não existiu como linha efectiva de delimitação até o estabelecimento dos estado modernos.
O tratado de Alcanices delimitava a fonteira com Castela e a sua prolongação para o sul (Estremadura, Andaluzia) e Portugal, mas não da Galiza e do extremo norte do território português.
Por incrível que isso possa parecer, aldeias como Randim e Tourem não eram nem galegas (espanholas) nem portuguesas, situação que ocorreu até ao século XIX e só foi alterada nos tratados de 1864 e 1926.
Só se traçou a fronteira para que os estados modernos, desejosos de cobrar tributos, pudessem recrutar soldados, e para serem finalmente capazes de negociar e cartografar uma delimitação até então inexistente. Uma fronteira que partiu aldeias pela metade como aconteceu em Rio de Onor (Bragança).
Conhecia-se como “Couto Misto” um território entre Ourense e Chaves, instituído durante a Idade Media, posteriormente vinculado à Casa de Bragança mas não à coroa de Portugal nem à de Castela. Este território estava isento de impostos, e não fornecia soldados nem a um reino nem a outro até ao tratado de Lisboa em 1864.
Para além disso, cada habitante do Couto elegia livremente a nacionalidade espanhola ou portuguesa. A partir do Tratado, que entrou em vigor em 1868, os seus domínios passaram para a soberania da Espanha.
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